A D. Alzira é uma velhinha que mora no meu prédio. No andar acima do meu. Costuma trazer o cabelo cinzento pretensamente apanhado num monho (os não alentejanos também usam esta palavra?) de onde saem todos os cabelos que têm vontade para isso. A sua roupa é velha como ela. Ambas estão no lado errado da idade.
A D. Alzira vê os vizinhos e sorri. Sorri e mostra a sua boca com três dentes, sendo que não garanto a saúde de nenhum deles. Quando sai pinta os lábios finos. De vermelho. Vivo.
Uma vez a D. Alzira encontrou-nos no átrio e perguntou se éramos as inquilinas do Sr. Z e se lhe podíamos dar o seu número de telefone. A partir daí a D. Alzira cumprimenta sempre e sorri. Mas nunca tenho a certeza de que me reconheça.
A D. Alzira tem uma história triste. Era rica (tanto que tem a casa em que mora) e agora é pobre. Toda a gente a enganou e lhe fez mal. A começar pelo ex-marido e terminando na minha vizinha do lado “essa velhaca que me fez tanto mal em solteira”, diz ela.
No outro dia veio bater-nos à porta. Quando digo que a senhora é pobre, não estou a brincar. Precisou de fazer umas obrazinhas e, como não tem luz em casa, veio saber, depois de já ter falado com o Sr. Z, se os senhores das obras podiam ligar uma extensão na nossa casa, para as obras, durante uma hora ou duas. Disse que sim e combinámos o horário.
Foi nesta situação que os meus prognósticos se concretizaram. Velha e só, a D. Alzira anseia por alguém com quem possa conversar. Apanhando o alguém, conversa sem parar, descrevendo, se puder, com minúcia, todos os que a enganaram e todas as situações em que isso aconteceu.
Dias mais tarde, apareceu outra vez, para confirmar o horário. Com todo o tempo de uma reformada sem muito em que pensar, vinha propor-me um esquema em que eu emprestaria a minha chave de casa ao Sr. Z, provavelmente para ele estar ali em casa no momento das obras (porque os momentos da minha disponibilidade não eram os que mais lhe convinham). Simpática, simpática, mas vinha com o seu esquema, como quem não quer a coisa, a ver se pegava. Levou um também simpático “Não, isso não é possível”.
Fora isso, a conversa desenrolou-se nos seguintes termos:
D. Alzira - …o meu marido, aquele malandro que me enganou tanto…
Marta – Então assim ficamos para sábado, não é verdade?
D. Alzira - … porque eu tinha outra casa, mas o malandro…
Marta – E depois confirma o horário, certo?
D. Alzira - … porque a casa era minha, que até o advogado que a D. Maria, que é muito minha amiga…
Marta – bom, então nesse caso, até sábado…
D. Alzira aproxima-se, dando a entender que me vai contar um segredo.
Eu afasto-me e começo a tentar fechar a porta.
Finalmente desiste e dá as boas noites.
Eu fecho a porta e penso que não posso soltar um: “Fogo! Chata da velha!” porque ela está no átrio à espera do elevador para ir para o andar de cima.
À minha cabeça vêm duas ideias. A primeira avalia a possibilidade de me tornar na sua melhor amiga para depois a convencer a vender-me a sua casa por tuta e meia.
A segunda pergunta: deveria eu ser mais compassiva? Serei um dia assim?
Mas, se assim fosse, isso provavelmente implicaria ficar uma hora à porta a ouvi-la, ou então (horror) convidá-la para entrar sabendo que, a partir daí, todos os pretextos seriam bons para ela voltar. Jamais estaria eu disposta a pagar este preço pela compaixão... Até porque nem todos os velhinhos são necessariamente bons (vejam a minha avó, por exemplo, que, se pudesse, teria um pidesco sistema de informação só para si) e esta está a aproveitar para, pela milésima vez, contar a história de vítima que, durante décadas, laboriosamente, construiu para si própria.
Mas, lá no fundo, persiste a pergunta: deveria eu ser mais compassiva?
A D. Alzira vê os vizinhos e sorri. Sorri e mostra a sua boca com três dentes, sendo que não garanto a saúde de nenhum deles. Quando sai pinta os lábios finos. De vermelho. Vivo.
Uma vez a D. Alzira encontrou-nos no átrio e perguntou se éramos as inquilinas do Sr. Z e se lhe podíamos dar o seu número de telefone. A partir daí a D. Alzira cumprimenta sempre e sorri. Mas nunca tenho a certeza de que me reconheça.
A D. Alzira tem uma história triste. Era rica (tanto que tem a casa em que mora) e agora é pobre. Toda a gente a enganou e lhe fez mal. A começar pelo ex-marido e terminando na minha vizinha do lado “essa velhaca que me fez tanto mal em solteira”, diz ela.
No outro dia veio bater-nos à porta. Quando digo que a senhora é pobre, não estou a brincar. Precisou de fazer umas obrazinhas e, como não tem luz em casa, veio saber, depois de já ter falado com o Sr. Z, se os senhores das obras podiam ligar uma extensão na nossa casa, para as obras, durante uma hora ou duas. Disse que sim e combinámos o horário.
Foi nesta situação que os meus prognósticos se concretizaram. Velha e só, a D. Alzira anseia por alguém com quem possa conversar. Apanhando o alguém, conversa sem parar, descrevendo, se puder, com minúcia, todos os que a enganaram e todas as situações em que isso aconteceu.
Dias mais tarde, apareceu outra vez, para confirmar o horário. Com todo o tempo de uma reformada sem muito em que pensar, vinha propor-me um esquema em que eu emprestaria a minha chave de casa ao Sr. Z, provavelmente para ele estar ali em casa no momento das obras (porque os momentos da minha disponibilidade não eram os que mais lhe convinham). Simpática, simpática, mas vinha com o seu esquema, como quem não quer a coisa, a ver se pegava. Levou um também simpático “Não, isso não é possível”.
Fora isso, a conversa desenrolou-se nos seguintes termos:
D. Alzira - …o meu marido, aquele malandro que me enganou tanto…
Marta – Então assim ficamos para sábado, não é verdade?
D. Alzira - … porque eu tinha outra casa, mas o malandro…
Marta – E depois confirma o horário, certo?
D. Alzira - … porque a casa era minha, que até o advogado que a D. Maria, que é muito minha amiga…
Marta – bom, então nesse caso, até sábado…
D. Alzira aproxima-se, dando a entender que me vai contar um segredo.
Eu afasto-me e começo a tentar fechar a porta.
Finalmente desiste e dá as boas noites.
Eu fecho a porta e penso que não posso soltar um: “Fogo! Chata da velha!” porque ela está no átrio à espera do elevador para ir para o andar de cima.
À minha cabeça vêm duas ideias. A primeira avalia a possibilidade de me tornar na sua melhor amiga para depois a convencer a vender-me a sua casa por tuta e meia.
A segunda pergunta: deveria eu ser mais compassiva? Serei um dia assim?
Mas, se assim fosse, isso provavelmente implicaria ficar uma hora à porta a ouvi-la, ou então (horror) convidá-la para entrar sabendo que, a partir daí, todos os pretextos seriam bons para ela voltar. Jamais estaria eu disposta a pagar este preço pela compaixão... Até porque nem todos os velhinhos são necessariamente bons (vejam a minha avó, por exemplo, que, se pudesse, teria um pidesco sistema de informação só para si) e esta está a aproveitar para, pela milésima vez, contar a história de vítima que, durante décadas, laboriosamente, construiu para si própria.
Mas, lá no fundo, persiste a pergunta: deveria eu ser mais compassiva?
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